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Deus o Filho

Lembro-me da minha perplexidade quando encontrei, pela primeira vez, a doutrina da geração eterna do Filho (isto é, Ele ser eternamente gerado pelo Pai). Eu estava me preparando para o seminário lendo a clássica Teologia Sistemática de Louis Berkhof e achei o tópico excessivamente especulativo. Reconheci a importância de afirmar que o Filho de Deus não é uma criatura, mas sim o próprio Deus. Mas eu não conseguia entender por que era necessário discutir a natureza da criação do Filho com tantos detalhes. Onde, na Bíblia, alguém poderia ter essa idéia? E por que isso importa?

Acontece que isso é muito importante e não é tão especulativo quanto pode parecer à primeira vista.

O Deus das Escrituras é trinitário — um Deus em três pessoas[i]. As distinções entre as pessoas não estão nos níveis da Divindade, pois todas as três pessoas são igualmente Deus. Conforme o Breve Catecismo de Westminster: “Há três pessoas na Divindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e estas três são um Deus, da mesma substância, iguais em poder e glória.” (BCW 6). Os cristãos não devem duvidar da divindade ou personalidade de qualquer pessoa da Divindade. Em vez disso, as distinções entre as pessoas da Trindade são conhecidas como propriedades pessoais: o Pai gera, o Filho é gerado, e o Espírito procede do Pai e do Filho. É crucial que entendamos essas distinções corretamente, pois negá-las é o primeiro passo para muitas heresias. O Filho não é de qualquer forma menos divino que Deus, o Pai; o Filho de Deus é, Ele mesmo, Deus, não menos que o Pai.

Portanto, falar da geração eterna do Filho é falar do que é próprio do Filho de Deus: Ele é gerado. Isso não minimiza a divindade do Filho de forma alguma. O nascimento do Filho não significa que Sua divindade seja menor que a do Pai, mas significa que Ele recebe Sua subsistência pessoal do Pai. A própria essência divina não é gerada. Em vez disso, na geração eterna, o Pai comunica a essência divina ao Filho; Pai e Filho possuem a mesma essência, sem mudança.

E esta geração deve ser eterna. A geração do Filho não poderia acontecer em um momento no tempo, pois, se acontecesse, o Filho não seria eternamente o Filho — nem o Pai seria eternamente o Pai. Se a geração do Filho fosse um evento isolado, isso significaria que Deus, em certo sentido, muda. Se o Pai se tornasse o Pai, ou o Filho se tornasse o Filho, então Deus não seria imutável (isto é, não varia). Como o Filho de Deus nunca muda, Sua geração deve ser uma geração eterna — não foi algo que aconteceu há muito tempo ou de uma vez por todas. É uma comunicação atemporal, sem lugar definido e imutável do Pai para o Filho. A geração eterna também não implica divisão de Deus, como se a essência divina fosse dividida entre as três pessoas ou multiplicada de uma pessoa para outra. Cada pessoa possui a mesma essência divina e a plenitude da essência divina. A geração eterna também é um ato necessário, o que significa que sempre é e não poderia ser de outra maneira.

A geração eterna afirma a plena divindade do Filho de Deus; não se refere em nenhum sentido à criação do Filho. Se o Filho fosse criado, Ele não seria totalmente divino. Isso estava no coração do conflito entre o pai da Igreja Atanásio e o herege Ário no século IV: Atanásio argumentou corretamente que o Filho de Deus não poderia ser o primeiro ser criado, mas Ele deveria ser eternamente o Filho de Deus. Nunca houve um tempo em que o Filho não existisse. O Filho sempre se relaciona com o Pai como Filho, e o Pai é sempre Pai.

É certo que a geração eterna é uma questão complexa. Mesmo que possamos explicá-la adequadamente, não podemos entendê-la completamente. Em outras palavras, é um mistério.

De onde vem esse ensino nas Escrituras? Uma testemunha importante é o evangelho de João, onde encontramos o termo grego monogenēs, que a Versão King James traduz como Filho “unigênito” (Jo. 1:14, 18; 3:16, 18; ver 1Jo. 4:9).  No entanto, a maioria das traduções modernas traduz monogenēs como Filho “único” (NVT, NTLH). O júri ainda está em dúvida se “único” seria, realmente, uma tradução melhor do que “unigênito”, mas o conceito de geração eterna não depende da forma como monogenēs é traduzido. Em vez disso, o conceito vem, em grande parte, do que as Escrituras revelam sobre a preexistência do Filho e o relacionamento eterno entre o Pai e o Filho (por exemplo, Jo. 17:5, 24; ver Cl. 1:15-20; Hb. 1:1-3). Nunca houve um tempo em que o Pai não fosse o Pai do Filho ou o Filho não fosse o Filho do Pai (Jo. 1:1-2; ver Mt. 11:25-27; Lc. 10:21-22). João 5:26 tem sido frequentemente usado para apoiar a doutrina da geração eterna: “Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo”. Muitos teólogos observam que essa é uma concessão de vida ao Filho que não poderia ter ocorrido no tempo. Portanto, deve ser uma concessão eterna da vida. Nesse caso, João 5:26 é um forte apoio à geração eterna.

O apoio à geração eterna também pode ser encontrado no Antigo Testamento. Um texto de prova historicamente proeminente tem sido o Salmo 2:7: “Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei”. Embora este texto seja usado no Novo Testamento para se referir à ressurreição de Jesus (At. 13:33), a Filiação declarada e vindicada na ressurreição é baseada na Filiação preexistente. Miquéias 5:2 também tem sido usado historicamente para apoiar a geração eterna: “E tu, Belém-Efrata, pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade.”  Isso costuma ser entendido como referindo-se tanto ao local do nascimento de Jesus (Belém) quanto à eternidade gerado pelo Filho (“cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”). Muitos exegetas modernos duvidam que este texto ensine a geração eterna, mas interpretações mais recentes nem sempre são melhores que as tradicionais. Independentemente da visão de alguém sobre esses textos do Antigo Testamento, a geração eterna do Filho é realmente suficientemente fundamentada nas Escrituras. Como em muitas doutrinas cruciais, ela não vem de um ou dois textos isolados, mas vem do ensino das Escrituras como um todo.

Como doutrina bíblica, a geração eterna do Filho não é especulativa; é prática, pois fala daquele que é Mediador da criação e redenção. O Filho divino preexistente é o Verbo — o Logos (Jo. 1:1,14) — através de quem o mundo foi feito (Cl. 1:16; Hb. 1:2). Seria errado ver a obra do Filho como começando apenas no Novo Testamento; Ele já era ativo como Criador e Revelador no Antigo Testamento (ver Jo. 1:1-5). O Filho também foi ativo na redenção, no Antigo Testamento. Judas identifica Jesus como aquele que libertou os israelitas do Egito (Jd. 5). No Novo Testamento, a Filiação de Jesus é especialmente importante no que diz respeito à obra da redenção. Na encarnação, o Filho de Deus assume um corpo verdadeiro e uma alma apropriada. Ele nasceu de uma virgem, preparada para o santo e preexistente Filho de Deus. Seu nascimento virginal significa que Ele não teve implicações no pecado de Adão, mas está à frente de uma nova criação. Como Filho de Deus, Jesus é o cumprimento de Davi (Lc. 1:31-33) e Adão (Lc. 3:38). Mas Ele é mais do que isso. Ele é o Eterno Filho de Deus. Ele é Emanuel, Deus conosco (Mt. 1:23), o Filho do Deus vivo (Mt. 16:16). Portanto, é apropriado que Sua Filiação seja proclamada em Seu batismo (Mt. 3:17; Mc. 1:11; Lc. 3:22), provada no deserto (Mt. 4:1-11; Mc. 1:12-13; Lc. 4:1-13), confirmado na transfiguração (Mt. 17:15; Mc. 9:7; Lc. 9:35), escarnecido na crucificação (Mt. 27:37-44; ver Mt. 26:63-64), e vindicado em Sua ressurreição (At. 13:33; Rm. 1:3-4). No entanto, o Filho não age isoladamente do Pai e do Espírito, pois as obras externas da Trindade são indivisíveis.

O Filho de Deus não chegou à Palestina no primeiro século; Ele existia antes mesmo do mundo ser criado. Ele criou e sustenta o mundo, e alcançou definitivamente a redenção para Seu povo. Ele é nosso Deus e Salvador (2Pe. 1:1) — o Filho de Deus eternamente gerado.


[i] Na divindade, uma pessoa, ou hipóstase, é “um indivíduo subsistente com natureza racional” (Tomás de Aquino). Cada uma das pessoas trinitárias pode ser distinguida como indivíduo, embora cada uma também subsista por si cada uma é uma única essência divina. O que os distingue não é a diferença nos atributos divinos, mas a propriedade pessoal distinta e incomunicável de cada pessoa (a ausência de princípio do Pai, a geração do Filho, a emanação do Espírito).

Este artigo foi publicado originalmente na Tabletalk Magazine.

Brandon C. Crowe
Brandon C. Crowe
O Dr. Brandon Crowe é professor associado de Novo Testamento no Seminário Teológico Westminster, na Filadélfia, e autor do livro “Was Jesus Really Born of a Virgin?” [Jesus realmente nasceu de uma virgem?].