A batalha pela graça somente - Ministério Ligonier
A luz da glória
janeiro 18, 2023
Boécio: o teólogo filósofo
janeiro 20, 2023
A luz da glória
janeiro 18, 2023
Boécio: o teólogo filósofo
janeiro 20, 2023

A batalha pela graça somente

Nota do editor: Este é o segundo de 7 capítulos da série da revista Tabletalk: A história da Igreja: século VI.

A primeira parte do século V testemunhou um severo debate na Igreja, conhecido como a controvérsia pelagiana. Esse debate ocorreu principalmente entre o monge britânico Pelágio e o grande teólogo do primeiro milênio, Agostinho de Hipona. Na controvérsia, Pelágio se opôs de maneira vigorosa ao entendimento de Agostinho sobre a queda, a graça e a predestinação. Pelágio defendeu que a queda afetou apenas Adão e que não houve imputação de culpa ou “pecado original” à descendência de Adão. Pelágio insistiu que as pessoas nascidas após a queda de Adão e Eva mantiveram a capacidade de viver uma vida de retidão perfeita sem a ajuda da graça de Deus. Ele argumentou que a graça “facilita” a justiça, mas não é necessária para ela. Rejeitou de forma categórica o entendimento de Agostinho de que a queda foi tão grave que deixou os descendentes de Adão em tal estado de corrupção moral que foram moralmente incapazes de se inclinar para Deus. As doutrinas de Pelágio foram condenadas pela Igreja em 418 d.C. em um sínodo em Cartago.

Embora o pelagianismo tenha sido rejeitado pela Igreja, logo surgiram esforços para suavizar as doutrinas de Agostinho. No século V, o principal expoente desse abrandamento foi João Cassiano. Cassiano, que era o abade de um mosteiro na Gália, junto com seus companheiros monges, concordou completamente com a condenação de Pelágio pelo sínodo em 418, mas se opuseram também à forte visão da predestinação apresentada por Agostinho. Cassiano acreditava que Agostinho havia ido longe demais em sua reação contra a heresia de Pelágio, e que tinha se afastado dos ensinamentos de alguns dos pais da Igreja, especialmente de Tertuliano, Ambrósio e Jerônimo. Cassiano disse que o ensinamento de Agostinho sobre a predestinação “debilita a força da pregação, da repreensão e do vigor moral… mergulha os homens no desespero e introduz uma certa necessidade fatalista”. Essa reação contra o fatalismo implícito da predestinação levou Cassiano a articular uma posição que desde então se tornou popularmente conhecida como “semipelagianismo”. Tal doutrina, como o nome indica, sugere um meio-termo entre Pelágio e Agostinho. Embora a graça facilite uma vida de retidão, Pelágio achava que não era necessário. Cassiano argumenta que a graça não apenas viabiliza a retidão, mas é uma necessidade essencial para alcançá-la. A graça que Deus coloca à disposição das pessoas, porém, pode e muitas vezes é rejeitada por elas. A queda do homem é real e grave, mas não tanto quanto Agostinho supôs, porque um certo nível de habilidade moral permanece na criatura caída na medida em que ela tem o poder moral de cooperar com a graça de Deus ou de rejeitá-la. Agostinho argumentou que a própria cooperação com a graça era o efeito de Deus capacitar o pecador para tal. O bispo de Hipona outra vez insistiu que todos aqueles que foram contados entre os eleitos receberam o dom da graça da regeneração que lhes trouxe a fé. Novamente, para Cassiano, embora a graça de Deus seja necessária para a salvação e ajude a vontade humana a fazer o bem, em última análise é o homem, não Deus, que deve desejar o bem. Deus não concede o poder de querer ao crente, porque esse poder de querer já está presente apesar da condição caída do crente. Além disso, Cassiano ensinou que Deus deseja salvar todas as pessoas e a obra da expiação de Cristo é eficaz para todos.

Cassiano entendeu que a predestinação era um conceito bíblico, mas colocou a presciência divina acima da escolha de Deus. Ou seja, ensinou que, embora a predestinação seja um ato divino, a decisão de Deus de predestinar é baseada em Sua presciência de como os seres humanos responderão à oferta da graça. Para Cassiano, não há um número definido de pessoas que são eleitas ou rejeitadas desde a eternidade, pois Deus deseja que todos os homens sejam salvos, mas nem todos os homens são salvos. O homem retém a responsabilidade moral e com essa responsabilidade o poder de escolher cooperar com a graça ou não. Em última análise, o que Cassiano estava negando no ensino de Agostinho era a ideia da graça irresistível. Para Agostinho, a graça da regeneração é sempre eficaz e não será negada pelos eleitos. É uma obra monergística de Deus que realiza o que pretende que ela realize. A graça divina transforma o coração humano, ressuscita o pecador da morte espiritual para a vida espiritual. Nesse ato de Deus, o pecador se dispõe a crer em Cristo e a escolhê-lo. O estado anterior de incapacidade moral é superado pelo poder da graça regeneradora. A palavra eficaz na visão de Agostinho é que a graça regeneradora é monergística. É a obra de Deus somente.

Pelágio rejeita a doutrina da graça monergística e a substitui por uma visão de sinergismo, que envolve uma obra de cooperação entre Deus e o homem.

Os pontos de vista de Cassiano foram condenados no Concílio de Orange em 529 d.C., que estabeleceu ainda mais os pontos de vista de Agostinho como expressões da ortodoxia cristã e bíblica. Porém, com a conclusão do Concílio de Orange no século VI (529 d.C.), as doutrinas do semipelagianismo não desapareceram. Estiveram em pleno funcionamento durante a Idade Média e foram solidificadas no Concílio de Trento no século XVI. Tais continuam a constituir uma visão majoritária na Igreja católica romana, ainda no século XXI.

A opinião da maioria sobre a predestinação, mesmo no mundo evangélico, é que a predestinação não se baseia no decreto eterno de Deus para trazer as pessoas à fé, mas em Sua presciência sobre a qual as pessoas exercerão sua vontade de chegar à fé. No centro da controvérsia nos séculos V e VI, no século XVI e hoje, permanece a questão do grau de corrupção infligido aos seres humanos caídos no pecado original. A polêmica continua. A diferença entre a controvérsia pelagiana e os problemas com o semipelagianismo é que o pelagianismo era visto pela Igreja naquela época e agora como uma abordagem subcristã e, de fato, anticristã da humanidade caída. A controvérsia semipelagiana, embora séria, não é considerada uma disputa entre crentes e incrédulos, mas uma polêmica interna entre cristãos.

Este artigo foi publicado originalmente na Tabletalk Magazine.

R.C. Sproul
R.C. Sproul
O Dr. R.C. Sproul foi fundador do Ministério Ligonier, primeiro pastor de pregação e ensino da Saint Andrew's Chapel em Sanford, Flórida, e primeiro presidente da Reformation Bible College. Seu programa de rádio, Renewing Your Mind, ainda se transmite diariamente em centenas de estações de rádio ao redor do mundo e também pode ser ouvido online. Ele escreveu mais de cem livros, entre eles A Santidade de Deus, Eleitos de Deus, Somos todos teólogos e Surpreendido pelo sofrimento. Ele foi reconhecido em todo o mundo por sua defesa clara e convincente da inerrância das Escrituras e por declarar a necessidade que o povo de Deus tem em permanecer com convicção em Sua Palavra.