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As raízes do legalismo

Uma das muitas contribuições de Martinho Lutero diz respeito à palavra latina incurvitas. Isso soa como algo que um dentista pode dizer a você quando ele cutuca e aponta seus molares, mas não é isso. Na verdade, essa palavra significa “voltados para dentro”. Significa que somos naturalmente interesseiros, egocêntricos e egoístas, e embora todos esses adjetivos sejam bastante danosos, esta condição de incurvitas tem um efeito ainda mais revelador. Por estarmos voltados para dentro, pensamos que podemos alcançar a justiça inteiramente por conta própria. Por isso, nos esforçamos ansiosamente para conseguirmos uma posição correta diante de Deus.

Quantas vezes você já ouviu alguém dizer que, contanto que nossas boas ações superem nossas más, Deus nos receberá no céu de braços abertos? Quantos sistemas religiosos são construídos sobre obras? Quantas pessoas se sentem presas pelas incessantes tentativas fracassadas de alcançar a perfeição? Esses são todos casos de incurvitas. É uma epidemia.

Entendendo muito bem este conceito de incurvitas, Lutero disse: “É muito difícil para um homem acreditar que Deus é misericordioso com ele, o coração humano não consegue entender isso”. Se não olhamos para a graça, olhamos para nós mesmos e para nossos próprios esforços, e é aí que estão as raízes do legalismo.

As raízes do legalismo estão no próprio coração humano pecaminoso e caído. O coração manifesta sua condição pecaminosa em nosso desejo deformado de confiarmos em nossos próprios méritos e em nossas próprias habilidades, na tentativa de por algum modo, sair do poço do pecado e alcançar a plenitude do caminho até o céu. Achamos a graça como o gosto amargo de um comprimido. Ela nos diz que nunca podemos ser bons o suficiente.

Curiosamente, o oposto do legalismo também tropeça na graça. O oposto do legalismo é o antinomianismo. Esta palavra inclui o prefixo grego “anti-”, “contra, no lugar de”, e a palavra grega “nomos”, “lei”. Teologicamente falando, os antinomianos fogem de qualquer obrigação legal ou de qualquer mandamento divino. Os antinomianos são como James Bond: eles têm licença para pecar. Mas essa é a triste mentira do antinomianismo. Não é liberdade, é licença.

A solução para o legalismo não é antinomianismo, a solução para o antinomianismo não é legalismo. A solução para ambos é a graça, aquela que Lutero nos disse que era difícil de entender. Explorar as raízes do legalismo servirá ainda não só para expô-lo, mas também para exibir os contornos brilhantes e impressionantes de sua solução, a graça de Deus.

Legalismo nas Escrituras

A expressão mais clara do legalismo nas Escrituras vem das histórias dos antagonistas nos Evangelhos, os fariseus. De fato, graças a eles, temos o termo “farisaico”, definido como “hipócrita, crítico, com autojustiça”. Nenhuma dessas três coisas é uma coisa boa. Em conjunto, temos uma coisa muito ruim. Outra definição nos informa que o termo “farisaico” significa um compromisso extremo com a observância religiosa e ritual – além da crença. Ambos os aspectos da definição são cruciais, o primeiro é o esforço e a ansiedade pelo céu, a segunda parte nos leva de volta à citação de Lutero e nossa aversão à graça – simplesmente não pode ser tão simples quanto a crença.

Cristo confrontou essa tendência de ser farisaico em quase todas as páginas dos Evangelhos. Um desses lugares é a parábola sobre o fariseu e o publicano em Lucas 18. “Graças te dou porque não sou como os demais homens”, ora o fariseu. Isso é autojustiça. O fariseu ainda afirma que jejua e dá o dízimo. Aqui há obediência exterior.

Nessa parábola, o fariseu é contrastado com o publicano, que simplesmente ora: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” Aqui há um clamor pela graça.

Alguns versos depois, certo homem de posição vem até Cristo. Ele também se comporta como um fariseu afirmando sua autojustiça. Parece que em todo lugar que Cristo vai, Ele encontra fariseus.

Ironicamente, os fariseus, embora pensassem o contrário, não estavam verdadeiramente preocupados com a lei de Deus. Na verdade, eles criaram todo um sistema de regulamentos para permitir que eles contornassem a lei de Deus. Eles eram especialistas em criar brechas, eles tinham um sistema de leis feito pelo homem para evitar a lei divina. E eles levaram Israel para o caminho errado. Por isso, vemos por que Jesus, tão veementemente, se opôs a eles e os chamou de falsos pastores de Israel, como na série de “ais” lançada em Mateus 23.

Antes de sua conversão, Paulo foi um desses falsos pastores. Paulo era o legalista consumado. Na verdade, seria difícil encontrar outra pessoa tão zelosa pela lei. Ele tinha conhecimento de causa quando declarou: “visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei” (Rm. 3:20). Ele tinha conhecimento de causa quando lamentou: “Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição” (Gl. 3:10).

Paulo também teve experiência pessoal com a graça. Assim, ele declarou com alegria: “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei” (Gl. 4:4-5). É impossível estudar Paulo sem entrar em contato com a graça. Assim, lemos em Romanos 5, que todo o nosso esforço chega ao fim em Cristo. Só podemos alcançar a paz com Deus pela fé em Cristo – o único que guardou a lei perfeitamente.

Legalismo na História

Ao nos voltarmos para as páginas da história da igreja, vemos o foco da igreja na graça eclipsado pelo legalismo. Isso aconteceu em grande escala após a controvérsia entre Agostinho e Pelágio. Como consequência dessa controvérsia, as sementes foram semeadas, o que acabaria resultando em um sistema completo de obras como a visão de salvação da igreja medieval. Uma chave aqui é a mudança do ensino bíblico sobre o arrependimento para o ensinamento da igreja sobre a penitência.

O arrependimento é ilustrado pelo publicano na parábola de Cristo. O arrependido simplesmente ora a Deus: “Tem misericórdia; eu sou um pecador”. A penitência é a lista de coisas a fazer que vai deixá-lo bem com Deus. No tempo de Lutero, a lista havia crescido bastante, então, Lutero tentou, em vão, alcançar a Deus sendo um bom monge. Lutero até entrou no mosteiro como uma tentativa extremamente mal orientada de agradar a Deus.

Apenas uma coisa resultou do fervoroso trabalho de Lutero: ele se encontrou ainda mais longe de Deus e atolado em ansiedade. Mais tarde na vida, ele sofreu fisicamente por causa de sua tentativa anterior de obter justiça por esses esforços. Mas em sua graça, Deus alcançou Lutero. Não podemos agarrar a graça naturalmente. É por isso que a graça nos agarra.

Um ramo da Reforma inicialmente celebrou esta gloriosa verdade da graça, mas depois afastou-se dela. Em Zurique, surgiram os anabatistas. Além de suas outras crenças, eles defendiam o afastamento da sociedade e a vida em comunidades segregadas. Eles logo desenvolveriam um código de vestimenta e regras de como iriam viver e trabalhar. Eles se chamavam Menonitas, pois seguiam os ensinamentos de Menno Simons (1496–1561). Em 1693, Jakob Ammann separou-se dos menonitas devido a prática do “banimento” – o afastamento daqueles que transgrediam as regras. Seus seguidores seriam conhecidos como os Amish. Eles também foram além do evangelho no que se refere a regulamentos e tradições.

A mesma dinâmica ocorreu no século XX em vários grupos fundamentalistas. Lembro-me de ter entrado em uma igreja na década de 1970 e me deparado com dois grandes diagramas mostrando diretrizes aceitáveis sobre cabelos e roupas para homens e mulheres. O cristianismo foi reduzido a listas, principalmente do que não fazer.

Assim como Cristo confrontou o legalismo em quase todas as páginas dos Evangelhos, você pode encontrar legalismo em todas as páginas da história da igreja. Entretanto, você também pode encontrar o oposto. O antinomianismo prosperou durante a Reforma, também prosperou e continua a prosperar em meio a grupos fundamentalistas. Infelizmente, podemos contar toda a história da busca equivocada da humanidade por Deus, traçando esses sempre presentes fios de legalismo e antinomianismo.

Legalismo na vida

O oposto do legalismo não é licença, é liberdade. Lutero chamou a Epístola aos Gálatas de sua “Katie”,  “Estou comprometido com ela”, ele dizia. Isso é um elogio que tem dois aspectos. Reflete o quanto ele amava sua esposa e reflete o quanto ele amava profundamente a mensagem de Gálatas. É a “Epístola da Liberdade”.

Em nossa tentativa de descobrir as raízes do legalismo, devemos olhar, finalmente, para nossas próprias vidas. Incurvitas nos impede de ver nossa verdadeira necessidade, nos engana em nos fazer pensar que somos basicamente bons e só precisamos ser melhores. O legalismo é verdadeiramente condenatório e bastante prejudicial. O legalismo pode até nos catapultar para o seu oposto, para uma vida de licença e uma vida, finalmente, de rebelião.

A realidade é que não somos bons. Quão irônico é que parte das “boas novas” do Evangelho é que não somos bons de forma alguma. E porque não somos bons, nunca podemos olhar para nós mesmos, mas devemos olhar para Aquele nascido de mulher, nascido sob a lei. Ele é o único justo. Ele guardou a lei e suportou sua punição por aqueles que confiam nEle. Deus derrama Sua graça livremente sobre nós por causa do que Cristo fez por nós. Cristo nos libertou (Gl. 5:1).

Este artigo foi publicado originalmente na Tabletalk Magazine.
Stephen Nichols
Stephen Nichols
O Dr. Stephen J. Nichols (@DrSteveNichols) é presidente da Reformation Bible College, diretor acadêmico de Ligonier Ministries e professor da Fraternidade de Ensino de Ligonier Ministries. Ele é autor de vários livros, incluindo For Us and for Our Salvation e Tempo de Confiança.