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Testemunhas da perseguição

Nota do editor: Este é o terceiro de 6 capítulos da série da revista Tabletalk: A igreja toma forma: os atos de Cristo no segundo século.

Rusticus, o prefeito de Roma, tinha tanta determinação de forçar os cristãos a obedecerem aos deuses de Roma. Prometeu uma morte bastante dolorosa aos que se recusassem. Mas Justino Mártir, um professor da fé cristã, que morava em Roma na época, resistiu à sua insistência com uma apresentação calma e confiante da verdade cristã. Finalmente, o prefeito confrontou Justino com uma pergunta final: “Então, você supõe que subirá ao céu para receber alguma recompensa?”. Justino respondeu: “Não suponho, mas sei e estou totalmente convencido disso.”

Tão certo estava Justino das verdades da fé cristã que podia dizer com confiança: “Nenhuma pessoa de pensamento correto se desvia da piedade para a impiedade.” Mas ele nem sempre teve tanta certeza.

Aprendemos, com o diálogo de Justino com Trifão, um inquiridor judeu, que ele nasceu de pais pagãos em Flávia Neápolis, uma cidade de Samaria, na Palestina. Estudou intensamente filosofia com vários professores: um estoico, um peripatético, um pitagórico e um platônico. Embora o platonismo tenha dado a Justino mais satisfação do que os outros sistemas filosóficos, não forneceu a certeza da verdade que ele procurava.

A conversão de Justino no ano 130 aconteceu após uma vigorosa discussão com um cristão experiente. A conversa expôs a superficialidade da compreensão da verdade de Justino e recomendou-lhe uma consideração séria sobre Cristo. Com zelo ardente por conhecer os profetas e os “amigos de Cristo”, Justino começou a estudar as palavras de Jesus. Concluiu, como diz em suas palavras a Trifão, que o ensino de Cristo “era a única filosofia verdadeira”.

Após sua conversão, Justino estabeleceu uma “escola” em Roma para ensinar a fé cristã e envolver os pagãos no debate. Também procurou fazer evangelismo entre os judeus. Seu ensino deu-lhe notoriedade generalizada entre a intelectualidade da cidade e o levou a um debate com um importante filósofo cínico chamado Crescêncio. A derrota de Crescêncio neste debate provavelmente levou Justino à sua prisão e eventual decapitação em 165, logo após o julgamento, sob o regime de Rusticus.

A maioria dos escritos de Justino não está disponível para nós hoje. Portanto, nosso conhecimento de seu pensamento vem de duas obras existentes, Apologia (I e II) e Diálogo com Trifão. Essas obras nos proporcionam uma agradável entrada na mente de Justino e nos mostram como ele apresentou o evangelho à sua cultura, e deu forma e definição à fé para pagãos e judeus.

Os três temas comuns

Três características são comuns ao testemunho de Justino, tanto para pagãos quanto para judeus. O fundamental para tudo é a regra de fé ou os aspectos históricos da missão redentora de Jesus. Em segundo lugar, o cumprimento da profecia do Antigo Testamento por Jesus encontra aplicação apropriada e habilidosa para os diferentes públicos de Justino. Terceiro, Justino apresenta claramente Jesus como o eterno Filho de Deus, digno de adoração e desde Sua encarnação, verdadeiro homem. Em todas as suas apresentações, Justino considera as Escrituras como a mais alta e única autoridade inerrante, incapaz de contradição. Sua profunda compreensão das doutrinas do cristianismo, pelas quais está disposto a morrer, dá poder à sua intrépida defesa.

Por exemplo, Justino várias vezes considera, diante de Trifão, os eventos da vida de Cristo como virtualmente autoevidentes de Seu caráter messiânico. “Mas se João veio como precursor”, aponta Justino, “exortando os homens ao arrependimento, e então Cristo veio […] e pregou o evangelho em pessoa, e afirmou que o reino dos céus é iminente, e que Ele teve que sofrer muito nas mãos dos escribas e fariseus, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia e apareceu novamente em Jerusalém para comer e beber com Seus discípulos”, esses fatos em si mostram que Ele cumpre todas as profecias e tipos do Antigo Testamento. Justino cita e expõe grandes porções das profecias para demonstrar que, em Sua aparição ao mundo, apenas Cristo  — com Seus ensinamentos, Suas curas, Seu sofrimento e morte, Sua ressurreição e ascensão, e Sua promessa de voltar — poderia cumprir as profecias do Antigo Testamento.

Esses mesmos fatos do evangelho serviram a Justino para defender tanto a clareza quanto a antiguidade da verdade no cristianismo, em oposição à imprecisão do paganismo e da filosofia grega. Embora Justino faz muitas concessões, ao admitir que “aqueles que viveram pela razão são cristãos”, inclusive vários dos antigos filósofos gregos, seu ponto é que qualquer verdade real que eles descobriram é mais clara na pessoa, nos ensinamentos e na obra de Cristo. “De tudo o que foi dito”, argumentou Justino com insistência, “um homem inteligente pode entender por que, pelo poder da Palavra, de acordo com a vontade de Deus, o Pai e Senhor de todos, Ele nasceu como um homem de uma virgem, chamou-se Jesus, foi crucificado, morreu, ressuscitou e subiu ao céu” (Apologia, 46). A aparição de Jesus na terra para proclamar as palavras que o Pai lhe disse e para realizar a tarefa redentora que o Pai lhe designou, bem como o Seu cumprimento de tudo o que os profetas disseram sobre Ele, confere credibilidade superior a todos os ensinamentos do cristianismo.

Argumentos para os pagãos

Justino usou alguns argumentos especialmente elaborados para confrontar o paganismo. Um deles foi sua insistência na superioridade moral do cristianismo. Ele usa muitos exemplos da brutalidade da cultura pagã, de como eles justificam injustamente suas abominações e da maneira hipócrita quando acusam os cristãos de crimes morais dos quais eles mesmos são os verdadeiros perpetradores. Justino escreve: “Nós, que uma vez nos deleitamos com impurezas, agora nos apegamos à pureza”, porque “nos consagramos ao Deus bom e não gerado” (Apologia, 14). Os artesãos habilidosos que esculpem deuses pagãos são “homens licenciosos […] experientes em todos os vícios conhecidos”, que “contaminam até as meninas que trabalham com eles”. Que tolice! Os ensinamentos de Cristo, abundantemente citados por Justino, mostram a clara superioridade moral do cristianismo e o absurdo das falsas acusações feitas contra os cristãos. A determinação dos cristãos em escapar da poluição mundana e reverter os padrões aceitos, da crueldade mundana e do desrespeito pela vida, mesmo que provocam a ira do mundo no processo, mostra que sua compreensão moral é instruída pela verdade eterna.

Justino também argumentou que o cristianismo se destaca na clareza da verdade. Ridicularizou e criticou a ingenuidade e a incoerência dos gregos que, ao receberem ensinamentos — ainda que estes afirmassem Cristo com maior plenitude e com demonstração histórica — acusavam de ser algo absurdo sem nem mesmo buscar comprovação. Justino se propôs a provar que o absurdo pertencia aos pagãos porque a verdade estava em Jesus.

No argumento de Justino, a prova consiste em três elementos: realidade histórica, cumprimento da profecia e argumentos superiores. Primeiro, o cristianismo se deleita com a realidade irredutível de seus eventos históricos. Nenhuma evidência histórica ou documentação existe para os contos fabulosos sobre Zeus, Júpiter, Minerva e outros. Mesmo que existissem evidências históricas, seriam inúteis, pois essas divindades não inspiram ou redimem a humanidade, mas a brutalizam e a degradam. No entanto, a certeza das ações e palavras de Jesus é inquestionável, tanto como uma questão de documentação quanto como um item ainda lembrado nas comunidades cristãs.

Segundo, o cumprimento da profecia de Jesus, como já mencionado, era abrangente, preciso e impossível de se forjar. O mundo foi preparado cuidadosamente para Sua vinda por meio das Escrituras do Antigo Testamento. João Batista anunciou isso imediatamente antes de Sua aparição, e Jesus afirmou ser o cumprimento de todas as profecias. Esses fatos mostram que Ele nos dá o verdadeiro conhecimento daquele que criou o mundo e o sustenta, que conhece todas as coisas e dá recompensas e castigos eternos de acordo com os princípios da justiça inefável.

Terceiro, porque Jesus é a manifestação histórica da verdade, e não há verdade que Ele não tenha originado, tudo o que é verdadeiro tem seu fundamento em Cristo. Justino argumentou que tudo o que foi corretamente proposto pelos filósofos veio como resultado da contemplação séria e difícil de “alguma parte do Logos”. Por não conseguirem contemplar a “Palavra inteira”, mesmo quando falavam bem, muitas vezes se contradiziam e sabiam sempre que falar de Deus era uma questão difícil. No entanto, Cristo falou com plenitude, precisão absoluta e total confiança. Suas palavras vinham de Seu próprio poder, que surgia do entendimento intrínseco e divino. Ninguém está disposto a morrer por Sócrates ou Heráclito. Mas, pela causa de Cristo, não apenas os instruídos e filósofos, mas os trabalhadores, escravos e incultos não só desprezam toda glória como não têm medo da morte.

Justino argumentou de forma convincente contra os principais fundamentos de vários sistemas filosóficos, e mostrou os absurdos a que eles conduziam. Tais foram suas interações com o cinismo e o estoicismo, bem como suas opiniões claras sobre os epicuristas e vários poetas obscenos. Apesar de seu grande respeito pelo platonismo, o considerava inadequado, pois “a semente de algo e sua imitação […] é uma coisa, mas a coisa em si, que é compartilhada e imitada de acordo com Sua graça, é outra bem diferente”.

O propósito de Justino não era puramente defensivo contra o paganismo, mas “para que, se possível, eles pudessem se converter”. Ele terminou sua Apologia I com a oração para que “os homens de todas as terras sejam considerados aptos a receber a verdade”.

Argumentos para os judeus

A apresentação de Justino aos judeus tinha muito do mesmo conteúdo teológico, mas o contexto e a força de seus argumentos eram diferentes. No entanto, seu zelo pela prova permaneceu inalterado. Ele diz a Trifão: “Vou provar a você, aqui e agora, que não acreditamos em mitos infundados nem em ensinamentos que não sejam baseados na razão, mas em doutrinas inspiradas pelo Espírito divino, abundantes em poder e repletas de graça.”

Justino compartilhou, com seu público judeu, a crença na revelação divina, a inspiração do Antigo Testamento, a unidade de Deus e a promessa de um Messias. De várias formas infinitamente importantes, no entanto, ele via o cristianismo como superior. Os cristãos têm uma compreensão exata do significado do Antigo Testamento, porque percebem sua tipologia (como o êxodo, a serpente no deserto, o sistema de sacrifícios, a redenção de Raabe e assim por diante) como cumprida em Cristo. Sabem que a circuncisão é cumprida na circuncisão do coração. A profecia tem clareza para eles porque a veem no contexto dos eventos da vida de Cristo. Seu conhecimento da aliança é mais completo porque eles são os destinatários da nova aliança prometida na antiga. Eles têm um conhecimento mais maduro de Deus porque conhecem o Ungido, o verdadeiro Filho de Deus, cujo nascimento assegura que Ele é de uma mesma natureza com o Pai e, portanto, digno de adoração.

Depois de trabalhar com profunda seriedade e intensidade para convencer Trifão e seus amigos da verdade da obra de Cristo para a redenção dos pecadores, Justino encerrou seu diálogo com estas palavras: “Eu imploro a você que coloque todos os seus esforços nessa grande luta por sua própria salvação e abrace o Cristo do Deus Todo-Poderoso ao invés de seus mestres.”

Da mesma forma, nossa paixão pela verdade também deve incluir uma preocupação pelas almas.

Este artigo foi publicado originalmente na Tabletalk Magazine.

Thomas Nettles
Thomas Nettles
O Dr. Thomas J. Nettles é professor de Teologia Histórica no Southern Baptist Theological Seminary, em Louisville, Kentucky.