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O espírito antinomiano

“Cada um faz o que quer.” Esse clichê desgastado dos anos 60 caracteriza o espírito da nossa época. Cada vez mais a liberdade está sendo equiparada ao direito inalienável de fazer o que quiser. Ela carrega consigo uma alergia inerente às leis que restringem, sejam elas as leis divinas ou as leis humanas.

Tão difundida é essa atitude anti-lei ou antinomiana que lembra tanto a época bíblica que provocou o juízo de Deus, porque “cada qual fazia o que achava mais reto” (Jz 17). No mundo secular, isso se reflete na noção de que não é função do Estado legislar sobre moralidade. A moralidade é uma questão particular, fora do domínio do Estado e até mesmo da Igreja. Ocorreu uma mudança sutil no significado das palavras que muitos não perceberam. A intenção original do conceito “você não pode legislar moralidade” era transmitir a ideia de que aprovar uma lei proibindo um tipo específico de atividade não necessariamente eliminaria tal atividade. A ideia da frase era que as leis não produzem, por si mesmas, obediência a essas leis. De fato, em algumas ocasiões, a proibição legal de certas práticas apenas incitou maior incentivo à prática do que é proibido.

A interpretação atual da moralidade legislativa difere da intenção original. Agora, na mente de muitos, isso significa que os órgãos legislativos do governo não devem se envolver com questões morais. Ao invés de afirmar que o governo é incapaz de legislar sobre moralidade, a proposta é de que ele não deve legislar sobre moralidade. O governo deve ficar de fora de questões como a regulamentação do aborto, práticas sexuais anormais, casamento e divórcio, e outras questões de natureza moral, já que a moralidade é uma questão de consciência e do âmbito particular. O fato de o governo legislar nessas áreas é frequentemente visto como uma invasão de privacidade pelo Estado e representa uma negação de liberdades básicas para o indivíduo.

Se levarmos esse tipo de pensamento à sua conclusão lógica, deixaremos o governo com pouco a fazer. Se o governo não puder legislar a moralidade, sua atividade será restrita a determinar as cores da bandeira do estado, da flor do estado e talvez do pássaro do estado. (No entanto, inclusive questões sobre flores e pássaros podem ser consideradas “morais”, pois tocam em questões ecológicas que são, em última análise, de caráter moral.) A vasta maioria dos assuntos que dizem respeito à legislação são de caráter moral. A regulamentação de assassinato, roubo e direitos civis são questões morais. A maneira como uma pessoa dirige na estrada é uma questão moral, pois afeta o bem-estar dos outros viajantes.

Questões sobre a legalização da maconha, em geral, se concentram no fato de que a maioria de certas faixas etárias está transgredindo a lei. Já que a desobediência é tão difundida, isso não indica que a lei é ruim? Tal conclusão não tem lógica alguma. Se a maconha deve ou não ser descriminalizada não deve ser determinada com base nos níveis de desobediência civil. No entanto, a questão é que muitos americanos refletem um espírito antinomiano em relação à maconha. Essa desobediência dificilmente é motivada por aspirações nobres a uma ética superior suprimida por um governo tirânico. Aqui a lei é quebrantada por uma questão de conveniência e apetite físico.

Dentro da igreja prevalece o mesmo espírito de antinomianismo. O Papa João Paulo I enfrenta o legado embaraçoso de seu antecessor enquanto tenta explicar ao mundo por que a maioria de seus adeptos americanos declara aos pesquisadores que praticam métodos artificiais de controle de natalidade, apesar de isso ser explicitamente proibido pela encíclica papal. É preciso perguntar como as pessoas podem confessar sua crença em um magistério infalível de sua igreja e, ao mesmo tempo, adotar uma posição de resistência firme em não se submeter a esse magistério.

Nas igrejas protestantes, os indivíduos com frequência se irritam quando os conselhos disciplinares da igreja os chamam para responsabilidade moral. Várias vezes declaram que a igreja não tem o direito de interferir em suas vidas privadas. Isso, apesar do fato de que em seus votos de membresia se comprometeram de forma pública a se submeter à supervisão moral da igreja.

O antinomianismo deveria ser quase inexistente na comunidade cristã evangélica. Infelizmente, os fatos não condizem com a teoria. Tão indiferente é o típico ‘evangélico’ em relação à lei de Deus que as profecias de destruição que Roma lançou contra Lutero estão começando a se concretizar. Alguns “evangélicos” estão, na verdade, usando a justificação somente pela fé como uma licença para pecar. Coloquei “evangélico” entre aspas porque tais pessoas só podem ser consideradas propriamente pseudoevangélicas. Qualquer pessoa que tenha a compreensão mais básica da justificação pela fé sabe que a fé autêntica sempre se manifesta no zelo pela obediência. Nenhum cristão sincero pode ter uma atitude indiferente em relação à lei de Deus. Embora a obediência a tais leis não justifique, a pessoa que foi justificada com certeza se esforçará para obedecê-las.

Sem dúvida, há momentos em que os mandamentos dos homens entram em rota de colisão com as leis divinas. Em tais casos, os cristãos não apenas podem desobedecer aos homens, mas devem desobedecer aos homens. Porém não estamos falando aqui de questões morais isoladas, mas de atitudes. O cristão deve ser mais atento e criterioso nesta época de antinomianismo. Devemos ter cuidado para não nos deixarmos levar pelo espírito desta época. Não somos livres para fazer o que é reto aos nossos olhos. Somos chamados a fazer o que é reto aos Seus olhos. A liberdade não deve ser confundida com autonomia. Enquanto o mal existir no mundo, a restrição moral da lei será necessária. É um ato de graça pelo qual Deus institui o governo. O governo existe para conter o malfeitor. Existe para proteger os inocentes e os justos. O justo é chamado a apoiá-lo o máximo que puder, sem comprometer sua obediência a Deus.


Artigo publicado originalmente em Ligonier.org.

R.C. Sproul
R.C. Sproul
O Dr. R.C. Sproul foi fundador do Ministério Ligonier, primeiro pastor de pregação e ensino da Saint Andrew's Chapel em Sanford, Flórida, e primeiro presidente da Reformation Bible College. Seu programa de rádio, Renewing Your Mind, ainda se transmite diariamente em centenas de estações de rádio ao redor do mundo e também pode ser ouvido online. Ele escreveu mais de cem livros, entre eles A Santidade de Deus, Eleitos de Deus, Somos todos teólogos e Surpreendido pelo sofrimento. Ele foi reconhecido em todo o mundo por sua defesa clara e convincente da inerrância das Escrituras e por declarar a necessidade que o povo de Deus tem em permanecer com convicção em Sua Palavra.