O caráter dos cidadãos do reino
dezembro 13, 2024O Rei e a lei do reino
Nota do editor: Este é o terceiro de 14 capítulos da série da revista Tabletalk: Manual para viver no reino.
O Evangelho segundo Mateus começa com uma declaração que carece de verbo, por isso talvez serve como título do livro: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão”. Aqui, em poucas palavras, é do que se trata este livro. É a história de Jesus Cristo. Começa a partir do Seu nascimento na linhagem de Abraão e David (Mt 1) até ao momento em que Ele está num monte na Galileia, com toda a autoridade no céu e na terra dada a Ele (Mt 28:16-20). Do início ao fim, Jesus é apresentado como o Rei: primeiro como o filho prometido de Abraão e Davi, “o recém-nascido Rei dos judeus” (Mt 2:2), “o Guia que há de apascentar a meu povo[o de Deus], Israel” (Mt 2:6). Depois como o Rei que triunfou sobre o pecado e a morte, e agora ordena que sejam feitos discípulos de todas as nações e ensinados a guardar tudo o que Ele ordenou (Mt 28:19-20).
A primeira das cinco grandes coleções de ensino de Jesus contidas em Mateus (Mt 5–7; 10; 13; 18; 23–25) serve tanto como um manifesto da lei do Seu reino quanto como uma rejeição vigorosa do ensino dado pelo escribas e fariseus. Por causa das predominantes distorções da lei de Deus que os escribas e fariseus fomentavam, era necessário que Jesus deixasse claro como o Seu ensino se posiciona em relação às Escrituras. Declara com ênfase que não veio para revogar a lei ou os Profetas, e sim para cumprir (Mt 5:17). Na verdade, Ele está muito distante de revogá-los que Ele coloca ênfase especial neste ponto com a primeira de Suas muitas declarações “em verdade vos digo” (mais de trinta estão presentes em Mateus): “Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5:18).
O ensino de Jesus está em claro contraste com o dos escribas e fariseus, e exige uma justiça que excede em muito a deles (Mt 5:20). Vemos esse mesmo foco na última seção do ensino de Jesus em Mateus (Mt 23-25), uma espécie de coluna paralela que corresponde à primeira e que nos ajuda a entender melhor cada uma delas, comparando-as com as outras. Ali, em sete “ais” de condenação (que contrastam com as bem-aventuranças que iniciaram a primeira seção), Jesus expõe de novo os erros dos escribas e fariseus, a quem Ele várias vezes chama de “hipócritas” e que colocam fardos pesados sobre o povo, sem levantar um dedo para ajudá-los (Mt 23:4).
Em Mateus 5:17-48, Jesus cita seis exemplos de distorções e erros da lei que foram ensinados pelos escribas e fariseus. Cada um é apresentado pelo que o povo ouviu, seguido pelo que Jesus ensina (Mt 5:21, 27, 31, 33, 38, 43). Aqui Jesus não está discordando das Escrituras, do que está escrito. Não, o assunto é o que os escribas e fariseus disseram. Jesus manifestará que apoia o que está escrito (Mt 4:4, 7, 10; Mt 11:10; 21:13; Mt 26:24, 31).
Talvez possamos ver de forma mais clara o que está acontecendo se começarmos com a última seção da série (Mt 5:43-48) e retrocedermos: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo”. Essa não é uma citação das Escrituras, embora os desavisados ou ingênuos possam facilmente pensar que é. A primeira metade da frase provém das Escrituras (Lv 19:18), porém a segunda metade não, e nada semelhante a isso se encontra na Palavra de Deus. Contudo, esta afirmação é o que o povo ouviu dos escribas e fariseus, como se fosse o ensino das Escrituras. No entanto, é uma grave distorção da lei, ao limitar a obrigação de amar apenas ao próximo e justifica (ou até mesmo exige) o ódio aos inimigos. Segundo a lei e os Profetas, Jesus pede algo totalmente diferente: amar os inimigos e orar por aqueles que os perseguem, para que vocês se tornem filhos do Pai que está nos céus (Mt 5:44-45). Isso é o que o Antigo Testamento ensina. Por exemplo, Provérbios 25:21 exige que você dê pão ao seu inimigo se ele estiver com fome e dar água se estiver com sede. Os escribas e os fariseus anulavam a Palavra de Deus (Mt 15:6).
Da mesma forma, os escribas e fariseus perverteram o princípio fundamental da justiça pública, “olho por olho, dente por dente” (Mt 5:38). Esse princípio aparece três vezes na lei (Êx 21:23-25; Lv 24:17-23; Dt 19:15-21). É um princípio que afirma que a punição por um crime deve ser proporcional à gravidade do crime. Em cada caso, trata-se de leis relativas à justiça pública, onde a punição adequada é especificada para crimes específicos. O princípio também limita a punição para que punições maiores não sejam aplicadas a delitos menores. Porém os escribas e fariseus transformaram este princípio de justiça pública numa regra de vingança para com os outros em conflitos interpessoais. Não deixaram espaço para perdoar os outros com liberdade como haviam sido perdoados. Não estavam agindo como filhos do Pai celestial.
A seguir, descobrimos que os escribas e fariseus tinham pouca consideração pela santidade dos juramentos e votos, isto é, pelo fato de serem feitos a Deus, mesmo quando envolvessem promessas feitas a outros. A abordagem mais completa deste assunto, em Mateus 23:16-22, revela que os escribas e os fariseus desenvolveram um esquema bastante complicado e enganoso de juramentos e votos qualificados, para que alguém pudesse com facilidade escapar dos deveres que haviam sido prometidos, o que tornava a promessa original em uma mentira. Não eram filhos da verdade nem filhos do Deus da verdade.
O mesmo ocorre com a questão do divórcio (Mt 5:31-32). Mais sobre este assunto se encontra mais adiante em Mateus (Mt 19:1-11), no entanto, aqui temos apenas a breve antítese que Jesus oferece à posição dos escribas e fariseus. Contudo, talvez desta forma o contraste seja mais nítido. Para os escribas e fariseus, quem se divorcia de sua esposa lhe entrega uma certidão de divórcio, como se isso fosse tudo o que importava. Seu ensino condensa bastante uma declaração muito extensa e complicada da lei de Moisés (Dt 24:1-4) e a distorce gravemente. Ainda que houvesse debate entre os rabinos sobre quais ofensas poderiam justificar o divórcio, conforme indicado nesta passagem, a prática que prevalecia quase sempre dava ampla permissão aos maridos para se divorciarem de suas esposas. Tornou-se uma questão de apenas entregar a ela uma certidão de divórcio. Jesus advertiu que isso muitas vezes levaria ao adultério subsequente num segundo casamento (a menos que o motivo do divórcio fosse imoralidade sexual). A posição demonstrava um desrespeito descuidado pelo propósito fundamental de Deus para o casamento, conforme declarado em Génesis 2:24 (ver Mt 19:4-6). Os escribas e fariseus estavam preocupados sobretudo com quanta liberdade um homem poderia ter ao se divorciar de sua esposa. Não obstante, Jesus lhes disse que primeiro deveriam se preocupar com o que ele poderia fazer para se manter unido à sua esposa e preservar o casamento.
Por último, chegamos às duas primeiras antíteses com as quais Jesus começou. Tratam de dois dos Dez Mandamentos, o primeiro sobre assassinato e o segundo com adultério. Em cada um deles, Jesus expõe o mandamento não apenas com o significado superficial relativo a assassinatos físicos e adultérios, mas também com os pensamentos e intenções do coração, com palavras e desígnios agressivos, e também concupiscências pecaminosas, que levam ao assassinato e ao adultério. Dadas as opiniões dos escribas e fariseus sobre a vingança e o divórcio, é fácil ver que eles se concentravam apenas nos atos exteriores e não nos pensamentos e intenções que poderiam levar a tais atos. Se concentraram apenas no exterior do copo, não no que havia no interior (Mt 23:25). Fizeram todas as suas obras para serem vistos por outras pessoas (Mt 23:5), porém Jesus pede uma vida que seja coram Deo, diante da face de Deus, quem olha tanto para o coração assim como a aparência exterior.
Jesus pede uma justiça que exceda a dos escribas e fariseus. Contudo o que Ele exige, Ele também cumpre. Ao contrário dos escribas e fariseus (Mt 23:3), Ele pratica o que prega, e o faz de forma perfeita. Ele nos exorta a seguir essa mesma justiça, para que sejamos perfeitos, assim como nosso Pai celestial é perfeito. No entanto, visto que estamos mortos em nossos delitos e pecados, isso não está ao nosso alcance. Assim, em Sua graça e amor, Ele nos salva dos nossos pecados (Mt 1:21). Ele nos concede e nos imputa Sua própria justiça, para que possamos ser justificados diante de Deus. Então, pelo Seu Espírito Santo que nos foi dado, Ele começa a nos transformar à Sua própria imagem, para que um dia Sua justiça apareça em nós. Nesse dia Sua ordem se tornará o cumprimento de Sua promessa: “Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mt 5:48).
Este artigo foi publicado originalmente na TableTalk Magazine.