Uma era crucial - Ministério Ligonier
“Quem dizeis que eu sou?”
janeiro 6, 2023
Nem um “i”
janeiro 8, 2023
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Uma era crucial

Nota do editor: Este é o quarto de 8 capítulos da série da revista Tabletalk: Uma era de definição: a história da Igreja no século IV.

Foi um século memorável. O que começou como a “era dos mártires” sob Diocleciano terminou com o surgimento do cristianismo como religião dentro do Império. O futuro da Igreja passou rapidamente da esfera dos marginalizados e perseguidos para a dos vitoriosos, de não ter nenhum status legal para ser a hegemonia religiosa. Assim iniciaram-se quatorze séculos de domínio da fé cristã no mundo ocidental.

O triunfo do cristianismo

Diocleciano acreditava que o Império estava em decadência, então começou a reformar o Estado. A história tem mostrado que ditadores com frequência se passam por libertadores, e apelam para as necessidades das massas; esse é o caso aqui. Diocleciano criou uma monarquia absolutista, menosprezando o senado e se autodeclarando um governante semidivino. Seus talentos organizacionais provaram-se benéficos à medida que o Império era protegido e se expandia geograficamente. Entretanto, em 303, ele iniciou uma perseguição cruel aos cristãos por não estarem prestando sacrifício aos deuses. Os perseguiu queimando igrejas e destruindo livros cristãos. Isso afetou o clero em 305, o que causou aprisionamentos, torturas e mortes. 

Constantino tentou unir a Igreja e o Estado; a Igreja foi concebida como uma instituição de utilidade pública. As propriedades dos cristãos que tiveram danos durante a perseguição foram reparadas e o clero recebia concessões fiscais e autoridade judicial para decidir litígios privados. A adoração ao imperador cessou, deuses desapareceram das moedas e oficiais foram proibidos de presidir ritos pagãos. Constantino destruiu os templos pagãos, recompensou cidades que suprimiram seitas e baniu os jogos de gladiadores. Um calendário cristão foi adotado, e o domingo se tornou um dia santo.

 A explicação do cristianismo

Na nova era de domínio da Igreja com o suporte do Estado, bispos poderosos emergiram. Muitos dos avanços organizacionais de Diocleciano, assim como a divisão do império em doze dioceses, foram trazidas à igreja, o que acrescentou complexidade e eficiência para sua estrutura governamental. Nesse século, emergiram bispos poderosos como Ambrósio de Milão (340-397), que era conhecido pelas habilidades retóricas que influenciaram profundamente Agostinho, pela música na igreja e pelo ideal monástico. Ambrósio também condenou a perseguição dos pagãos por Teodósio I em Tessalônica (390) e o excomungou. Jerônimo (340-420) foi um excelente erudito bíblico e monástico (fundou um monastério em Belém). Ele é mais conhecido por sua tradução da Bíblia do idioma original sob a direção do Bispo Dâmaso de Roma: a Vulgata latina, a Bíblia da Idade Média. João Crisóstomo (345-407), outrora patriarca de Constantinopla, foi um pregador eloquente e um reformador moral, chamado de o maior expositor cristão da sua era. Eusébio (aprox. 263-340), bispo de Cesareia, embora manchado por suas visões moderadamente arianas, era um erudito e clérigo. Sua história eclesiástica, a principal fonte de nosso conhecimento da igreja nos primeiros séculos, concederam-lhe o título de “Historiador da Igreja”. Cirilo de Jerusalém (aprox. 315-386) foi um notável pastor, escritor e catequista.

Um dos maiores benefícios da nova proeminência da Igreja no Império era que as questões teológicas podiam ser discutidas em uma base mais extensa se comparada a séculos anteriores. Na verdade, os imperadores desempenharam um papel importante na resolução de tensões que ameaçavam a tranquilidade do império. Os bispos ao redor do Império podiam reunir-se para discutirem e formularem respostas para questões intrigantes. Estudiosos falam da “era ecumênica”, período de várias reuniões globais de bispos para desvendar problemas e formular credos. Como resultado, os clérigos ajudaram a definir a fé ortodoxa. Não inventaram a fé, mas eram habilidosos em explicá-la de uma forma aceitável a todas as igrejas. 

Quando a paz chegou às igrejas, o imperador tornou-se profundamente interessado no bem-estar do cristianismo. Assuntos religiosos passaram a ser preocupação do Estado. A questão que dominou o século, a deidade de Jesus Cristo, está no coração da fé cristã. Os clérigos se empenhavam há algum tempo para explicar a relação do Pai com o Filho. Como a igreja poderia de maneira crível proclamar que Jesus Cristo é Deus, e ainda dizer que “o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor” (Dt 6:4)? Ao estender a divindade ao Salvador, o monoteísmo parecia estar sob ameaça. 

Quando, no século IV, um certo presbítero buscou explicar o relacionamento do Pai com o Filho negando Sua igualdade absoluta, o palco estava preparado para uma resolução. Ário (aprox. 250-336), de Alexandria, afrontou seu bispo. Ele foi condenado em um concílio local em 321, mas sua visão dividiu os bispos e ameaçou a harmonia do mundo constantino. Em consequência, Constantino convocou o primeiro concílio ecumênico, ou mundial, dos bispos da igreja em Nicéia (uma casa de verão perto da nova capital ainda a ser concluída, Constantinopla). O imperador favoreceu a visão do bispo Atanásio (aprox. 296-373), o recente sucessor de Alexandre. Isso ajudou a determinar as conclusões do concílio. Ário negou a equidade do Pai e do Filho para evitar o modalismo (posição a qual achou que Atanásio defendia). Atanásio negou a desigualdade do Pai e do Filho (posição a qual acusou Ário de advogar a favor). Mais de trezentos bispos se reuniram em assembleia e condenaram os ensinamentos de Ário. Atanásio e Constantino, dentre outros, consideravam que a frase “de uma substância com o Pai” expressava a co-igualdade do Pai e do Filho.

Em parte, as tensões em andamento resultaram de diferenças linguísticas. O ocidente latino distinguia o termo “pessoa” e “substância”. Eles podiam falar, assim como fez Tertuliano no século anterior, de duas pessoas e uma substância. O Oriente grego viu os termos como sinônimos e acusou o Ocidente de apoiar o modalismo. O apoio à visão adocionista de Ário aumentou (visão que afirmava a divindade do Salvador à custa de Sua eternidade). 

O trabalho monumental dos três bispos da Capadócia (Basílio de Cesareia [aprox. 330-397], Gregório de Nazianzo [aprox. 329-385) e Gregório de Níssa [aprox. 330-395]), em desemaranhar a confusão linguística, abriram caminho para um segundo concílio ecumênico. Convocado por Teodósio I em Constantinopla (381), esse concílio afirmou e expandiu o Credo Niceno. Os termos “substância” e “pessoa” foram distinguidos. O primeiro se refere aos atributos de Deus que são igualmente compartilhados pelo Pai e pelo Filho; o segundo, salienta as distinções, não em forma, mas em função. Essas distinções dentro da divindade relacionam-se com a redenção da criação.

O debate sobre o relacionamento entre o Pai e o Filho resultou na compreensão sobre o Espírito Santo. A questão crucial para a insistência de Atanásio de que Jesus é Deus era: “Como poderia um ser menos que absolutamente divino nos proporcionar a redenção divina, a vida de Deus na alma?” A questão concernente ao Espírito Santo era “como poderia um ser menos que Deus nos trazer à santidade divina?” Em Constantinopla, a igreja foi capaz de articular a doutrina da Tri-unidade de Deus. Falar da Trindade propriamente é falar de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, o grande três-em-um. A doutrina da Santíssima Trindade não teria objeções nas igrejas cristãs por mais de um milênio. Essa foi a realização suprema da Igreja do século IV. Os bispos não inventaram a doutrina da igualdade do Pai e do Filho; nos deram uma explicação do que a igreja sempre confessou. Deus é um e Jesus Cristo é Deus. 

O concílio também abordou um problema que seria resolvido no século V no Concílio de Calcedônia (451). Em Nicéia e Constantinopla, foi árduo explicar o relacionamento pré-encarnado do Filho com o Pai. A questão relacionada a isso era: qual era a relação entre a divindade e a humanidade de Cristo quando Ele se encarnou? A luta para explicar essas coisas começou aqui, mas a explicação final veio depois.

Apolinário (aprox. 310-390), bispo de Laodicéia, afirmou que Cristo foi sempre completamente Deus, mas ele estava disposto a denegrir Sua humanidade para preservar a unidade de Cristo. Ele argumentou que Cristo não possuía uma mente ou alma humana, na falta disso, habitava a divindade. Cristo era verdadeiramente Deus, mas não verdadeiramente homem. Sua visão de Cristo foi condenada e considerada tão destrutiva quanto a de Ário.

Atemporalidade e mudança

O que nós, no século XXI, podemos aprender com os cidadãos do século IV?  Para os santos que estavam passando pelos terríveis expulsões de Diocleciano, era importante ter em mente que Deus é tão soberano nos momentos sombrios quanto nos mais agradáveis. Ele está trabalhando em Seu grande e inalterável plano mesmo quando não conseguimos ver como o bem pode vir da tragédia. Quem poderia imaginar que a ira de Diocleciano seria o último suspiro de morte do paganismo e que a Igreja estava sendo preparada para uma era completamente nova? É bom saber que as aparências podem não refletir a realidade.

Entretanto, existe um fator constante no século IV que provê continuidade para todos os cristãos. O denominador comum é a paixão da Igreja por definir e defender a doutrina dos apóstolos. Quando a perseguição acabou e a Igreja se encontrou em um ambiente favorável, ela imediatamente começou a explicar as maravilhas de sua proclamação: a absoluta divindade de Jesus Cristo, a beleza do Salvador encarnado. Por quê? No centro da fé cristã estão as boas novas da redenção do pecado por meio daquele que ficaria no lugar do pecador, carregaria sua culpa e satisfaria a dívida da ira santa de Deus. Apenas Deus poderia fazer isso. O grande Juiz da humanidade foi julgado por nós. Porém, apenas um humano poderia ficar no lugar dos humanos, e Ele teria que ser perfeito. Quem poderia fazer isso? Um que seja Deus e, ao mesmo tempo, homem perfeito, o Senhor Jesus Cristo.

A centralidade, ou preocupação, da igreja deve sempre ser Cristo e Suas misericórdias. Somos gratos aos homens e mulheres, clérigos e leigos, desse século maravilhoso por modelar isso para nós. Nossa oração é que Cristo se torne a preocupação central da igreja no século XXI.

Este artigo foi publicado originalmente na Tabletalk Magazine.

John D. Hannah
John D. Hannah
O Dr. John D. Hannah é professor de Teologia Histórica no Dallas Theological Seminary em Dallas, Texas. Ele escreveu muitos livros, entre eles Como glorificamos a Deus?