Vasos de barro - Ministério Ligonier
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Vasos de barro

Nota do editor: Este é o primeiro de 6 capítulos da série da revista Tabletalk: Motivo de toda alegria: os atos de Cristo no terceiro século.

Se algum pai da Igreja foi submetido à rigorosa torção e distorção de seus pontos de vista para acomodar as agendas modernas e o revisionismo histórico, esse é Tertuliano, o apologista do século III.

Tertuliano, cujo nome completo era Quintus Septimius Florens Tertullianus, ganhou o título de “pai da teologia latina”. Ele viveu principalmente em Cartago, no norte da África entre 160 e 220 d.C. Convertido sendo adulto, aplicou suas habilidades como advogado profissional na defesa intelectual da fé cristã.

Há duas frases que com frequência são atribuídas a Tertuliano. A primeira é certamente genuína, a segunda altamente provável.

A primeira frase é esta: “O que tem a ver Atenas com Jerusalém? Que relação existe entre a academia e a Igreja?”. Essas perguntas são retóricas, e a resposta para cada uma é considerada uma negação enfática. Tertuliano sustentou intensamente a superioridade da revelação apostólica à filosofia especulativa. Criticou fortemente os filósofos de Atenas — Platão, Aristóteles e outros — mas não foi tão crítico a ponto de nunca apelar para eles quando pudessem servir na defesa do cristianismo. Tertuliano estava engajado no combate intelectual com os hereges dos seus dias, especialmente com os gnósticos, que às vezes procuravam suplantar a revelação bíblica com suas teorias místicas e especulativas e outras vezes buscavam atribuir apoio apostólico aos seus pontos de vista. 

Tertuliano esteve sobre os ombros de Irineu quando defendeu a autoridade da Escritura quanto a autoridade da Igreja.

A segunda frase é provavelmente espúrio, mas é com frequência atribuída a Tertuliano. Esta é a frase, “Credo ad absurdum”, que literalmente significa: “Acredito porque é um absurdo.” A ideia de que existe algum tipo de virtude em acreditar em algo porque aquilo é absurdo é um credo bem-vindo em uma cultura pós-moderna bastante influenciada por um irracionalismo existencial. Uma tradição inteira de teólogos “dialéticos” do século XX se gloriou no irracional, sendo Karl Barth, quem declarou que alguém não se torna um cristão maduro até que esteja disposto a afirmar ambos os dois polos de uma contradição. Seu compatriota, Emil Brunner, insistiu que uma contradição é a marca da verdade. Esses teólogos tinham tanta aversão ao racionalismo que terminaram sacrificando a racionalidade. 

Essa abordagem teológica gera o fideísmo, doutrina na qual a fé não se distingue apenas da razão, mas, como única base da verdade cristã, a fé é separada da razão. Os fideístas tendem a ser céticos sobre o uso da razão ou das evidências para defender as alegações da verdade cristã. Em seu ponto de vista, ser racional é se afundar em uma forma subcristã ou anticristã de pensamento grego pagão.

Inclusive na teologia reformada moderna, vemos uma tendência ao irracionalismo, até o ponto em que alguns estudiosos “reformados” realmente argumentam que a lei da não contradição não se aplica à mente de Deus. Essa visão destruiria toda a confiança nas Escrituras, porque tudo o que a Bíblia ensina pode significar sua antítese na mente de Deus. Em Seu pensamento, Jesus poderia ser Cristo e Anticristo ao mesmo tempo e na mesma relação.

Para esses pensadores, que detestam a lógica, Tertuliano surge como um herói. Mas quando examinamos os escritos de Tertuliano, em particular suas Prescrições contra os hereges (De Praescriptionibus Haereticorum), vemos que Tertuliano não se opunha à razão. Na verdade, a frase atribuída a ele era uma alusão à ideia bíblica de que o que é verdade pode ser considerado tolice por aqueles cujas mentes estão obscurecidas pelo pecado. Tertuliano também apelou para a revelação natural como base para certas verdades que foram compreendidas e defendidas pelos filósofos pagãos. Sua crítica do pensamento gnóstico fornece informações valiosas, extremamente necessárias em nosso tempo, à medida que testemunhamos o ressurgimento do neognosticismo, não apenas na cultura, mas também na Igreja.

Assim como Tertuliano, Orígenes (186 a 255 d.C.) foi um apologista do século III. Seu ministério se desenvolveu, em sua maior parte, em Alexandria, que havia sido um centro do judaísmo helenístico. O principal centro intelectual do Egito produziu líderes como Clemente, que também trabalhou como apologista.

Orígenes não era diferente da famosa menininha do poema “There was a little girl”, de Henry Wadsworth. Como aquela garotinha, Orígenes, quando era bom, era muito, muito bom, mas quando era mau, era terrível. Em Orígenes vemos as forças e fraquezas conjuntas que tendiam a caracterizar os pais da igreja primitiva. Na era subapostólica, a Igreja não tinha o poder titânico dos apóstolos originais, tampouco apreciava a percepção cumulativa que levou séculos para se desenvolver e que exigiu gênios como Agostinho para expressá-la.

Sua resposta apologética ao filósofo Celso (Contra Celso) e sua defesa da inspiração divina da Bíblia, foram algumas das realizações de Orígenes. Infelizmente, em sua defesa da Bíblia, foi fraco em sua compreensão da confiabilidade histórica das Escrituras. Para defender a Bíblia, se apressou em empregar um método alegórico de interpretá-la, um método que prejudicou o entendimento da Igreja sobre as Escrituras nos séculos vindouros.

A ironia da abordagem alegórica de Orígenes às Escrituras é vista em seu ato precipitado de autocastração. Como homens e mulheres frequentavam suas aulas, procurou se proteger contra a tentação sexual. Ele tomou as palavras de Jesus, “há outros que a si mesmos se fizeram eunucos por causa do reino dos céus” (Mt 19:12b), de uma maneira radicalmente literal sem se refugiar na alegorização desse texto. Essa ação criou um problema de credibilidade para ele, e Orígenes logo foi atacado pelo bispo Demétrio, que tornou a vida de Orígenes miserável nos anos posteriores.

Em seu ensino, Orígenes adotou uma visão grega da preexistência da alma, ensinou o universalismo, levantou questões sobre a natureza física do corpo ressurreto de Cristo e manteve uma visão defeituosa da Trindade. (Devemos lembrar que a Igreja ainda estava em uma profunda reflexão sobre a questão da Trindade e ainda não havia chegado a um entendimento firme dela.) No entanto, seu trabalho sobre a oração chegou até nós como um tratado precioso, assim como seus ensinamentos sobre o martírio. Ele expressou esperança de que sua vida terminaria da forma mais virtuosa possível, sendo martirizado por amor de Cristo. Isso não aconteceu, pois ele morreu de causas naturais em 255 d.C. Porém, o historiador da Igreja Eusébio testifica que Orígenes sofreu profunda agonia durante a perseguição ordenada por Décio, ao ser torturado, sofrer estiramento e confinado a uma masmorra, onde esteve acorrentado.

O amor pessoal e a devoção de Orígenes a Cristo nos dão um vislumbre da piedade cristã no terceiro século.

Este artigo foi publicado originalmente na Tabletalk Magazine.

R.C. Sproul
R.C. Sproul
O Dr. R.C. Sproul foi fundador do Ministério Ligonier, primeiro pastor de pregação e ensino da Saint Andrew's Chapel em Sanford, Flórida, e primeiro presidente da Reformation Bible College. Seu programa de rádio, Renewing Your Mind, ainda se transmite diariamente em centenas de estações de rádio ao redor do mundo e também pode ser ouvido online. Ele escreveu mais de cem livros, entre eles A Santidade de Deus, Eleitos de Deus, Somos todos teólogos e Surpreendido pelo sofrimento. Ele foi reconhecido em todo o mundo por sua defesa clara e convincente da inerrância das Escrituras e por declarar a necessidade que o povo de Deus tem em permanecer com convicção em Sua Palavra.