A Regra Beneditina - Ministério Ligonier
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A Regra Beneditina

Nota do editor: Este é o último de 7 capítulos da série da revista Tabletalk: A história da Igreja: século VI.

Desde que as epístolas do Novo Testamento foram escritas, os cristãos receberam conselhos sobre como devem viver a vida cristã. Quanto devemos orar? Que progresso podemos esperar para alcançar a santidade bíblica nesta vida? A perfeição é uma meta alcançável? O cristianismo é melhor vivido em circunstâncias normais de família, casamento e vocação, ou em um isolamento eremita ou em comunidades especialmente formadas com o propósito de cultivar oração, adoração e trabalho?

Com o fim da perseguição à igreja primitiva os cristãos ganharam liberdade de culto no Império romano, a vida monástica se originou como um movimento leigo que oferecia respostas específicas a essas questões. Com o martírio não sendo mais um meio pelo qual as pessoas pudessem demonstrar as exigências de auto-sacrifício do evangelho, muitos crentes acharam a condição pecaminosa da cultura romana tão opressiva que “abandonaram” completamente a sociedade. Procuravam expressar o espírito de devoção ascética por meio da vida monástica.

Surgiram dois tipos de vida monástica. Antão (falecido por volta de 356), amigo íntimo de Atanásio, o famoso oponente do arianismo, fundou o monasticismo no Egito, retirou-se para o deserto e renunciou aos confortos materiais para levar uma vida de austera autodisciplina. Modelou a vida cristã como uma existência eremita: uma busca solitária pela santidade por meio do jejum, oração e batalha contra as forças demoníacas. Atanásio ajudou a disseminar esse modelo eremítico por meio de sua obra muito popular, A vida de Santo Antão. Inspirados pelo exemplo de Antão, miríades de indivíduos fugiram das cidades, viveram em cavernas, no topo de pilares (estilitas) e em outros lugares isolados.

Por outro lado, Pacômio, um ex-soldado, originou o primeiro monasticismo comunitário no início do século IV. Fundou dez mosteiros e adotou uma regra ou código de disciplina no qual os monges não viviam isolados, mas em comunidades. Após seguir o exemplo da igreja primitiva, os monges trabalhavam, oravam, comiam juntos e compartilhavam suas posses, tudo sob a estrita supervisão do abade, o líder do mosteiro. A motivação de ambas as formas de monasticismo era o desejo de santificação pessoal, manifestado nos três votos austeros de pobreza (livrar-se dos bens mundanos), castidade (abster-se do casamento e da vida familiar) e obediência (viver de acordo com as regras estritas da ordem).

Na parte oriental do Império, o monaquismo tornou-se institucionalizado sob a Regra de Basílio da Capadócia (316–397) e assumiu um aspecto místico. Ao adotar 2 Pedro 1:4 como modelo, os monges do monasticismo oriental se dedicavam à oração, meditação, jejum e outras disciplinas ascéticas com o objetivo específico de se tornarem “participantes da natureza divina”. A theosis ou deificação, alcançar a união com Deus, assumiu importância primária. Atanásio resumiu esse princípio em sua famosa declaração: “O Filho de Deus se fez homem para que nos tornássemos Deus.” Ele não quis dizer que nos tornamos Deus ontologicamente (isto é, em nosso ser), mas que através da comunhão com Cristo, os crentes podem estar “em Cristo” e tornar-se conforme à Sua imagem.

Entretanto, o monasticismo no Ocidente assumiu um padrão mais prático. Jerônimo, por exemplo, traduziu a Bíblia para o latim e escreveu muitos comentários, uniu erudição à vida comunitária. Ele influenciou muitos romanos aristocráticos a distribuir suas fortunas aos pobres e transformar suas magníficas casas em mosteiros. João Calvino elogiou essas primeiras formas de monasticismo em suas Institutas (4.8-10) pela devoção rigorosa que elas promoveram e pelo fato de servirem como “colégios monásticos” e preparar homens para o pastorado. Ao fornecer clérigos para as igrejas, produziram “homens grandes e notáveis em seu tempo”. Ele comparou a defesa de Agostinho de uma vida simples no século IV com a proliferação de regulamentos e corrupções que permearam as ordens monásticas no século XVI.

Diante desse pano de fundo, estamos preparados para considerar talvez o defensor mais proeminente do monasticismo ocidental, Bento de Núrsia (480–543), uma vila no centro-norte da Itália. Sob sua influência, o monasticismo adotou uma forma mais prática e tornou-se o padrão universal na Europa. Bento é de tal estatura que dezesseis papas, incluído o anterior pontífice, adotaram seu nome e tentaram reproduzir seu trabalho em seu papado. Bento começou como estudante em Roma, mas fugiu do que considerava a vida degenerada da cidade para viver como eremita em uma gruta desolada em Subiaco. Como Antão, lutou fortemente contra as tentações das forças demoníacas e lutou para obter controle sobre suas paixões.

Mas deixou sua vida solitária depois de três anos convencido de que enquanto alguns podem buscar a perfeição sozinhos, o crente comum precisa de uma comunidade disciplinada. A severidade de sua devoção e sua reputação de pregador, alimentação dos pobres e curação de doentes resultaram na eliminação do paganismo local, na conversão de muitos ao cristianismo e na formação de doze claustros habitados por aqueles atraídos por seu exemplo. Finalmente, em 529 fundou o famoso mosteiro de Monte Cassino, a casa-mãe da ordem beneditina localizada no sudeste de Roma.

Sua maior conquista foi redigir a Regra que leva seu nome, que se baseou nas regras anteriores de Basílio de Cesaréia e Agostinho. Bento tentou registrar em sua Regra os princípios e práticas fundamentais ensinados na Bíblia como um modo de vida. Uniu indivíduos com ideias semelhantes em um ambiente comunitário.

Em setenta e três breves capítulos, a Regra cria uma comunidade na qual o culto e o trabalho funcionam como focos duplos da vida cristã sob a supervisão do abade. Como os monges se aderem às regras da ordem, todas as propriedades são mantidas em comum e todos são tratados igualmente, sem levar em consideração a posição terrena. A Regra une todos os seus membros como uma família e regula praticamente todos os aspectos de sua vida comunitária. Para garantir que a disciplina severa e a cooperação harmoniosa permeiem a vida comum, Bento une a humildade à obediência: “Um monge deve, não apenas com o coração, mas também com o corpo, mostrar sempre humildade a todos que o virem; isto é, no trabalho, no oratório, no mosteiro, no jardim, na estrada, nos campos”. Dividiu o dia de um monge em vários segmentos: adoração comum, canto dos salmos, meditação e oração (sete horas devido a uma interpretação literal do Sl 119:16: “Sete vezes ao dia eu te louvo…”), trabalho manual (seis ou sete horas) com uma refeição (sem carne) feita ao meio-dia.

A adoração estava no centro da vida. Onze dos setenta e três capítulos regulam sua oração pública. Embora não quisesse reduzir a oração a um sistema rígido, Bento estabeleceu alguns parâmetros claros. Todo o Saltério, por exemplo, era recitado semanalmente para que a oração permeasse a vida diária. Para proteger contra o excesso de zelo, a Regra afirma: “Em comunidade a oração deve ser sempre breve.” Para integrar a oração em toda a vida de seus monges, Bento concebeu um cronograma, os sete “ofícios diários” (conhecido hoje como “liturgia das horas”), diferentes horas de oração intercaladas ao longo do dia, para que não existisse grande intervalo sem oração comunitária. A devoção diária do monge começava com Matinas na madrugada, seguidas por Laudes antes do amanhecer, “Hora Primeira” às seis da manhã, “Hora Terceira” no meio da manhã, “Hora Sexta” antes do meio-dia, “Vésperas” no anoitecer e Completas antes de se encerrar o dia.

O modo de vida no mosteiro era simples e desprovido de medidas extremas. A semana continha dois dias de jejum. Os trabalhos dos monges pela manhã e à tarde assumiam uma variedade de formas, que iam  de tarefas domésticas, trabalhos manuais nos campos, educação infantil (origem das escolas de clausura), atividades literárias e pregação para pessoas do campo. Ao não exigir tarefas específicas, a regra de Bento permitia considerável liberdade aos monges, desde que o trabalho fosse compatível com sua vida comunitária e o desempenho dos ofícios diários. Ao ordenar o trabalho, a Regra procurava seguir a injunção de Paulo de trabalhar para evitar a ociosidade. Dois anciãos fizeram rondas para garantir que os irmãos se empenhassem em seus respectivos trabalhos. Isso deu origem ao ditado laborare est orare, “trabalhar é orar”.Assim, o monasticismo começou como um meio pelo qual indivíduos e grupos cumpriam as exigências bíblicas para uma vida santa. No século VI, através da Regra beneditina, a vida monástica se espalhou por toda a Europa. Enquanto os ideais de pobreza, castidade e obediência foram institucionalizados e incorretamente valorizados como mais valiosos e eficazes do que as vocações comuns, a integração da adoração e do trabalho como meios igualmente importantes pelos quais os crentes servem e glorificam o Senhor continua sendo uma lembrança vívida das demandas sociais da vida do Novo Testamento. As ordens monásticas foram vítimas de várias corrupções à medida que a Idade Média se desenvolvia e foram reformadas pelo surgimento de novas ordens e interpretações mais rígidas da regra original de Bento. Mas, na melhor das hipóteses, o monasticismo continuou a fornecer modelos para a vida cristã, por meio dos quais personagens posteriores – como Bernardo de Clairvaux – mantiveram acesa a luz do evangelho.

Este artigo foi publicado originalmente na Tabletalk Magazine.

Andrew Hoffecker
Andrew Hoffecker
O Dr. W. Andrew Hoffecker professor emérito de História da Igreja no Reformed Theological Seminary. É autor de vários livros, entre eles Piety and the Princeton Theologians [Piedade e os teólogos de Princeton], Charles Hodge: The Pride of Princeton [Charles Hodge: o orgulho de Princeton] e Revolutions in Worldview [Revoluções na cosmovisão].