Amor, justiça e ira
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Amor, justiça e ira

Nota do Editor: Este é o quinto de 16 capítulos da série da revista Tabletalk: Atributos de Deus mal compreendidos.

Francis Schaeffer uma vez nos encorajou a imaginar andar na rua e encontrar um jovem bandido espancando uma senhora idosa. Ele está batendo nela várias vez enquanto ela se agarra à bolsa que ele está tentando roubar. Schaeffer pergunta: “O que significa amar meu próximo nessa situação?” Sem dúvida, amar o próximo significa que uso a força (ira justa) necessária para subjugar o bandido (mau) e resgatar (amar) a idosa (inocente). Amor e justiça, bondade e santidade, graça e ira não são opostos. São complementares. Em última análise, são interdependentes. Amor sem justiça é mero sentimentalismo. Justiça sem amor é pura vingança. Em Deus, porém, “encontraram-se a graça e a verdade, a justiça e a paz se beijaram” (Sl 85:10). O amor busca justiça para os amados. A justiça protege, vinga e justifica os amados. A cruz de Cristo é a expressão perfeita tanto do amor de Deus que salva pecadores indignos quanto da justiça de Deus que exige que um preço justo pela salvação seja pago.

A SIMPLICIDADE DE DEUS

Há uma harmonia perfeita entre o que percebemos como tensões entre os vários atributos de Deus. Estritamente falando, não existem múltiplos atributos, mas uma gloriosa essência divina. Os teólogos clássicos muitas vezes colocaram a simplicidade divina em primeiro lugar na discussão sobre os atributos, ao argumentar que uma compreensão correta da simplicidade é essencial para uma compreensão correta de todos os atributos. Deus é simples. Ele é espírito, indiviso, singular, não constituído de partes. Ele é um, sem corpo, partes ou paixões. Quando estudamos os atributos de Deus, não estamos contemplando diferentes partes de Deus. Consideramos cada atributo separadamente por causa das limitações de nossos poderes de raciocínio. “Não há muitos atributos em Deus, mas apenas um”, declarou o puritano Lewis Bayly, o que expressa a visão do teísmo clássico, “que nada mais é do que a própria essência divina, seja como for que você a chame”. O attributa divina de Deus é inseparável de Sua essentia Dei.

Dada a unidade essencial dos atributos divinos, o que podemos dizer sobre a relação entre o que percebemos ser as expressões mais brandas e contundentes de seu caráter, entre amor e ira, entre misericórdia e justiça? Pode ser útil responder à nossa pergunta concentrando-se no amor, o atributo em torno do qual a discussão e a controvérsia giram. “Deus é amor”, concordam a Bíblia e a opinião popular. Como, então, devemos entender sua justiça e ira?

MAIS DO QUE O AMOR

Em primeiro lugar, “Deus é amor, ainda mais do que o amor”. O amor é tratado pelos teólogos mais antigos como um subconjunto da bondade. A bondade de Deus, o que Stephen Charnock denominou “o atributo capitão”, é o gênero do qual amor, graça, misericórdia, bondade e paciência são os tipos. Esse método de classificação em si implica que “Deus é amor”, não significa que Deus é amor com exclusão de Seus outros atributos (1 Jo 4:8). O apóstolo João não escreve que “o amor é Deus”. A equação não pode ser invertida. A Bíblia também diz que Deus é “luz” (1 Jo 1:5), e que Deus é “fogo consumidor” (Hb 12:29). A mesma construção gramatical é usada em todos esses casos. O Deus que é amor também é “fiel” e “justo”, João também nos afirma (1 Jo 1:9). “Embora Deus seja infinitamente benevolente”, declara o presbiteriano do século XIX, J. W. Alexander, “a benevolência infinita não é toda de Deus”. O amor de Deus é um amor justo, e Sua justiça é uma justiça amorosa. Não devemos permitir que um atributo domine e anule os outros. Charles Spurgeon expressa desta forma: “Deus é… tão severamente justo como se não tivesse amor e, ainda assim tão intensamente amoroso como se não tivesse justiça”.

DEFINA O AMOR

Em segundo lugar, “deve-se permitir que a Bíblia defina o amor”. Com certa frequência, o amor de Deus foi entendido de tal forma que nega as qualidades morais de Deus. “Eu acredito em um Deus de amor”, alguém pode dizer enquanto anula o dia do julgamento e apaga o fogo do inferno. As categorias morais são descartadas “em nome do amor”. “Um Deus amoroso ‘nunca’ faria isso”, começa a afirmação bem-intencionada e, em seguida, segue uma lista de distinções de estilo de vida ou exigências morais que Deus, alega-se, nunca faria. Ele nunca iria me condenar, ou querer que eu fosse infeliz, ou desaprovar minha conduta, ou desafiar minha identidade escolhida. Por que Ele não o faria? Porque, assim diz a alegação, Ele é único e sempre aceita tudo e todos. Deus foi redefinido por uma compreensão amorfa do amor, noções desvinculadas da santidade e da própria Escritura. Quando os apóstolos dizem que Deus é amor, querem dizer que Ele é agap, não ers, caritas, nem amor, amor abnegado e sacrificial, não amor romântico ou erótico, nem amor calorosamente sentimental ou amor de aceitação acrítica. O amor de Deus é um amor que distingue, corrige e é justo

A Bíblia revela um Deus que é bom e justo. Ele é “compassivo e clemente” e, no entanto, “não inocenta o culpado” (Êx 34:6-7). “Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus ”, diz o apóstolo Paulo (Rm 11:22, ênfase adicionada). Se Ele não fosse justo, não seria bom. Se Ele fizesse vista grossa para o pecado, se ignorasse o mal, se tolerasse a injustiça, se deixasse os inocentes à mercê dos ímpios — sem ser resgatados, vingados, vindicados e eternamente indistinguíveis dos ímpios, compartilhassem o mesmo espaço, o mesmo destino, as mesmas recompensas e as mesmas punições — Deus não seria bom, compassivo, justo ou santo. “Seu amor não é e não pode ser cego e indulgente”, diz Ian Hamilton, “assim como Sua justiça e santidade não são e não podem ser frias e arbitrárias”. Mais uma vez, o amor requer justiça.

INCLINADO A AMAR

Em terceiro lugar, “Deus está inclinado a amar”. Embora não devamos permitir que o amor ofusque todos os outros atributos de Deus, podemos dizer que o amor, e com o amor Sua bondade em geral, em certo sentido, é mais “natural” para Deus do que Sua ira. Ele prefere amar contra as expressões mais severas de Seu caráter. Estamos ampliando a linguagem neste ponto, porque os atributos de Deus, como observado, são uma unidade harmoniosa. Amor e justiça não estão guerreando um contra o outro na natureza ou na consciência de Deus. Porém, a Bíblia nos ensina que Deus “tem prazer na misericórdia” (do hebraico hesed), embora nunca ensine que Ele tem prazer em mostrar ira (Mq 7:18). “Deus é mais inclinado à misericórdia do que à ira”, diz Thomas Watson. “Pelo contrário, atos de severidade são feitos à força por Ele.” A Bíblia ensina que Ele “não aflige, nem entristece de bom grado”, mas ama de bom grado e com disposição (Lm 3:33; veja Dt 7:6-7). Ele é “longânimo” enquanto é rápido para perdoar e “grande em misericórdia” (Sl 103:8; veja Êx 34:6). Isaías chama o julgamento de Deus de “sua obra estranha” (Is 28:21) ou o que os teólogos chamavam de sua opera aliena, sua tarefa estranha. Ele é um Juiz relutante. Deus está mais inclinado a amar — mostrar bondade, graça e misericórdia — do que manifestar raiva, ira e julgamento. A expressão de amor é mais reveladora de Sua inclinação ou direção de Sua natureza, mais uma manifestação de Sua preferência, do que a expressão de Sua ira. De fato, o amor de Deus, afirma o puritano William Gurnall, “coloca em ação todos os Seus outros atributos”. 

Nossa articulação dos atributos de Deus deve sempre ser expressa com humildade. Por mais que tenhamos falado, sempre há mais a ser dito. O finito não pode conhecer o infinito de forma abrangente ou exaustiva. No entanto, podemos conhecer a Deus verdadeiramente e podemos falar onde a Bíblia fala, pois revela um Deus que é amor e justo, o monumento ao qual temos no Calvário.

Este artigo foi publicado originalmente na Tabletalk Magazine.

Terry Johnson
Terry Johnson
O Rev. Terry L. Johnson é ministro da Independent Presbyterian Church em Savannah, Geórgia. Ele é o autor de The Case for Traditional Protestantism [A defesa do protestantismo tradicional] e Adoração reformada.